REFLEXÕES SOBRE CIDADANIA E TOTALITARISMO A PARTIR DA GEOGRAFIA POLÍTICA DA EUROPA (9º Ano)

 *O tema pode ser trabalhado de forma interdisciplinar com História.


A Geografia política da Europa foi moldada por muitos conflitos e guerras. O continente foi palco das duas Guerras Mundiais, e da Guerra Fria, e continua sendo palco de conflitos na atualidade, como a Guerra na Ucrânia, envolvendo os países da OTAN e a Rússia.
Esses conflitos, com suas mais diversas e profundas causas, sempre possuem o envolvimento de regimes totalitários, que mobilizam à força seus próprios cidadãos para iniciar agressões contra outros países, causando não apenas mudanças na configuração das fronteiras nacionais e dos mapas, mas principalmente a destruição de milhares de vidas inocentes.

A 2ª Guerra Mundial é visto como o caso mais extremo dos horrores da guerra e do totalitarismo, diante da ascensão do regime Nazista liderado por Adolf Hitler, e pela perseguição aos judeus e outras minorias promovidas pelo regime, e pelos horrores dos campos de concentração onde foram promovidos desde trabalhos forçados a execuções em massa.

A grande pergunta que fica é: como todos esses absurdos foram promovidos, sem oposição da população, e mesmo dos soldados e oficiais que presenciavam essas desumanidades? Como é que um único homem, ou um pequeno grupo de homens consegue(m) concentrar tanto poder para agir dessa forma? Será que ninguém mesmo poderia detê-los? Para responder a essas perguntas, vou recorrer a dois escritores: o filósofo humanista francês Étienne de La Boétie, e a filósofa judia Hanna Arendt.


DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, DE ÉTIENNE DE LA BOÉTIE (1563)




O francês Étienne já se perguntava em seu famoso discurso, publicado somente após sua morte:


"Por ora, gostaria apenas de compreender como é possível que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações tolerem, por vezes, um tirano sozinho, cujo único poder é aquele que lhe conferem; cujo único poder de lesá-los depende apenas da vontade que têm de tolerá-lo; que não faria mal algum se não preferissem sofrer a contradizê-lo"


Em seu discurso ele procura dar diversas respostas à esse questionamento. Além de buscar compreender essa "obediência cega" a uma figura tirânica, ele indica que o poder de um tirano só existe pela conivência de milhares de pessoas, que simplesmente não questionam sua autoridade, seja por temor, por indiferença, ou por pensarem erroneamente que "não há nada que se possa fazer". Quanto à isso, o filósofo rebate:


"Quanto a esse único tirano, não é preciso combatê-lo, não é preciso derrotá-lo, pois ele derrota a si mesmo, mas que o país não consinta com sua servidão; não é preciso tirar-lhe algo, e sim dar-lhe nada; o país que não faça nada contra si mesmo. São, portanto, os próprios povos que se deixam ou, ainda, se fazem maltratar, pois ao pararem de servir estariam livres; é o povo que se subjuga, que corta a própria garganta, que, podendo escolher entre servir e ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente com seu infortúnio e até mesmo o busca".


Para o filósofo francês, Étienne de La Boétie, bastaria a coletividade recusar-se a seguir as ordens do tirano, partindo do princípio de que: "não é porque um ato errado está na lei que torna-se justo". Talvez muitas pessoas boas e pacíficas ajudaram a promover atos de terror e de violação de direitos humanos simplesmente porque "era obrigatório" ou porque "estava na lei". Bom, a escravidão era aceita pela lei em vários países por muito tempo, e nem por isso era moralmente correta. Se ninguém tivesse questionado essa lei e lutado contra ela, até hoje teríamos essa prática desprezível tratada como algo "normal e aceitável. Nesse caso se aplica aquela máxima atribuída (de forma questionável) a Edmund Burke : "Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada"; ou outra frase atribuída a Martin Luther King:



O "patriotismo" também é um apelo comum de tiranos. Quantos horrores são movidos "em defesa da pátria"? Cabe lembrar que o próprio conceito de "pátria" é bastante subjetivo, e pode ser construído de forma arbitrária, e utilizado de forma ainda mais arbitária (e sobre esse assunto específico pretendo me aprofundar em outro post). Mas cabe ressaltar aqui que o conceito de "pátria" é muito utilizado como instrumento de mobilização, levando muitos a obedecerem cegamente e a praticar atos desprezíveis (alguns deles até mesmo contra a própria nação) em nome da pátria ou do patriotismo. E isso os tiranos das duas grandes guerras mundiais fizeram muito bem, e os tiranos da atualidade continuam fazendo ao promover suas guerras e enviarem muitos de seus cidadãos a matarem ou morrerem por interesses econômicos das elites que comandam esses Estados.

Trecho do filme "Shrek".

HANNAH ARENDT SOBRE OS COLABORADORES DO NAZISMO




Essa linha de raciocínio levantada por La Boétie é bem complementada pela filósofa judia Hannah Arendt. Para isso, trago aqui o trecho de um texto do portal Politize:


"Ao longo da Segunda Guerra Mundial, com a ascensão do nazismo, tivemos inúmeros casos de migração e deportação de judeus. A função do exílio e deslocamento era conduzida por oficiais do partido nazista.
Um deles era Karl Adolf Eichmann, responsável por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do Departamento de Segurança de Berlim.
Com o fim da guerra e a derrota da Alemanha, alguns funcionários do regime nazista foram perseguidos e acusados ​​dos crimes que cometeram no período da guerra. Muitos deles fugiram com medo do julgamento.
Eichmann, um dos principais colaboradores de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, fugiu para a Argentina. Ele foi encontrado e levado para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte. Hannah, foi convidada para assistir o julgamento e escrever suas impressões sobre esse indivíduo.
Ela aceitou o convite e foi assistir ao julgamento, e todo o conteúdo escrito durante o julgamento deu origem ao livro 'Eichmann em Jerusalém'.
"

Hannah Arendt vai considerar Eichmann culpado não por ser um nazista e anti-semita convicto, ou por ser alguém que tivesse ódio e desejo de fazer o mal, mas por ser alguém incapaz de pensar e questionar ordens. Ele alegou que cometeu todas aquelas atrocidades apenas porque "cumpria ordens". Cabe aí o questionamento: quantos de nós não seríamos também culpados numa situação dessas? Culpados porque não questionamos, porque "não pensamos" de forma crítica, apenas executamos ordens cegamente sem refletir sobre nossa ação, sobre o quanto ela impacta positiva ou negativamente as outras pessoas? Será que nesses momentos pensaríamos apenas no nosso próprio bem-estar e no daqueles que nos convém? Ou nos posicionaríamos contra a arbitrariedade, contra a injustiça, e em defesa daquilo que é correto?


MAS AFINAL, O QUE PODEMOS FAZER?

Talvez muitos pensem que nada pode ser feito para mudar a realidade política e social de um país. Podem pensar que "as coisas são assim, sempre foram assim, e cabe apenas a nós aceitarmos". Podem pensar que não há nada que possamos fazer quando um governo promove guerras, invasões a outros países, cerceamento de liberdades individuais, perseguições a seus cidadãos, ou a pobreza e a desigualdade social, etc. 

Cabe observar que o governo não é uma entidade superior e abstrata, ele é feito por pessoas, especialmente no caso de países democráticos (como o Brasil), são pessoas que foram colocadas por nós, e que também podem ser tiradas por meio do voto. É preciso, em primeiro lugar, que criemos uma consciência democrática, onde paremos de enxergar os governos e seus agentes como "autoridades", e passemos a vê-los como o que são: REPRESENTANTES, servos do povo! As leis de um país e ações de um governo devem ser reflexo da vontade popular, e devem ser mudadas quando não estão de acordo com os anseios da coletividade.

Além dessa consciência democrática, é preciso atuar para os meios de participação popular, seja em âmbito individual, ou coletivo. Alguns deles são:

1º ELEIÇÕES E FISCALIZAÇÃO. É preciso escolher os representantes que estejam de acordo com suas ideias. Qual a proposta dos candidatos a presidente, governador e prefeito? Qual a proposta dos deputados (federais e estaduais), senadores e vereadores que você vai votar? Qual a postura dos ministros e secretários escolhidos pelo poder executivo? Como democracia não se resume a voto, após escolher as pessoas de acordo com o que elas defendem, procure fiscalizar. Independente se os eleitos foram candidatos que você escolheu ou não, fiscalizar é uma responsabilidade de todo o cidadão, acompanhando na imprensa, nos noticiários e redes sociais as ações do governo e do congresso, verificando se nenhuma ação nociva está sendo tomada.



2º OPINIÃO PÚBLICA E MOBILIZAÇÃO. Após fiscalizar, pode ser que você encontre alguma ação errada do governo, que precise ser barrada ou revertida. E isso é possível de fazer através da mobilização coletiva. Hoje temos as redes sociais como principal meio de conscientizar as pessoas à nossa volta. Supomos (diante do contexto estudado) que o governo iniciasse uma agressão militar, e mobilizasse parte de seus cidadãos de forma obrigatória. Muitos de nós poderíamos utilizar as redes sociais para expressar nossa oposição à essa medida. Poderíamos, por meio das redes sociais, organizar manifestações pacíficas, pressionando os parlamentares do país a se oporem à medida. E promover várias outras formas de conscientização e mobilização sobre esse assunto (tomado como exemplo).


A Guerra do Vietnã foi um exemplo de como a pressão popular pode ajudar a impedir guerras

3º MOVIMENTOS SOCIAIS ORGANIZAÇÕES COLETIVAS

Além da mobilização para causas específicas (como o exemplo da oposição a guerras, utilizado anteriormente), os cidadãos podem envolver-se de forma permanente na fiscalização de ações. Podem unir-se ou mesmo fundarem organizações civis que tenham objetivo de promover alguma mudança, envolvendo-se ativamente como cidadãos conscientes. Há, na atualidade, diversos movimentos sociais de vários tipos, lutando por várias causas. Podemos citar movimentos em defesa do meio ambiente, de combate ao racismo, pelos direitos das mulheres, em defesa do direito à moradia; há também os sindicatos de diversas categorias, que tem o papel de lutar pelos direitos trabalhistas dos seus filiados, dentre muitos outros exemplos.




Que possamos ser cidadãos conscientes de nosso papel e de nossos direitos, em defesa daquilo que é correto, sempre vigilantes para não sermos vítimas de nenhuma forma de arbitrariedade e totalitarismo. Que o contexto europeu (que estudamos em História e Geografia) nos ensinem essa lição, a não sermos inertes, indiferentes, e que sejamos ativos promotores da mudança!

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